A segunda “cegueira” do dançarino e coreógrafo Duda Paiva, no auge da sua carreira internacional.
Duda Paiva como Van Gogh, foto de Petr Kurecka
A mágica de Duda Paiva desafia classificações. Acontece no palco e tem elementos de drama e humor, dança, música e manipulação de bonecos, mas o resultado é sempre maior do que a soma destes fatores. Depois de alguns minutos em cena, os bonecos desaparecem. Ou melhor, o manipulador desaparece. Ou, melhor ainda, os dois se fundem em uma nova realidade que dispensa explicações e barreira. Simplesmente hipnotiza, toca fundo e emociona.
A alma anárquica de Duda nunca permitiu que o seu corpo estivesse parado ou acomodado num lugar só. Aos 14 anos o levou para o teatro, e dali para a dança, ainda na Goiânia dos anos 80. De lá foi para a Índia, onde o butô a sequestrou e o levou para o Japão pra aprender com o grande mestre Kazuo Ono. Só anos depois, já na Holanda, um encontro com Porshia La Belle (uma boneca apresentada a ele pelo grupo Gertrude Theater de Israel) lhe permitiu construir uma base firme, a sua própria companhia teatral, e lhe deu um propósito de longo prazo: o desenvolvimento de uma técnica única, inédita e universal, que envolve a fusão de dança, teatro e manipulação de bonecos esculpidos por ele mesmo em espuma elástica. Hoje em dia a Duda Paiva Company, com base em Amsterdã, encanta os quatro cantos do mundo e o bailarino e coreógrafo goiano dissemina a sua arte através de espetáculos e workshops itinerantes que vão do Canadá à Austrália, do Brasil à Noruega.
Duda encontrou uma brechinha para falar com o Braziel em Amsterdã entre espetáculos em Lisboa e Dusseldorf, logo após uma aula fechada que ele deu ao diretor londrino do Lion King e um dia antes de partir para um mês de ensaios na Noruega. Em setembro, Duda é convidado de honra do mais importante festival de teatro de objetos do mundo: o Festival Mondial du Theatre des Marionnettes de Charleville-Mézières, na França. Ali ele estreia o seu novo espetáculo Blind, uma coprodução entre Austrália, Noruega, França e Holanda. Nesta entrevista exclusiva ao Braziel, Duda explica porque se sente insatisfeito com a Holanda e pretende passar mais tempo no Brasil, no futuro próximo.
cartazes do Festival Mondial du Theatre des Marionnettes de Charleville-Mézières de 2015, com os bonecos de Duda Paiva
A tua biografia, no site da companhia, começa em 96, quando você chega na Holanda. O que aconteceu do teu nascimento até 96?
Quando eu tinha 14 anos meu irmão me levou para uma escola de artes dramáticas em Goiânia. Lá eu comecei a fazer teatro e aos 15 eu já fui convidado pra fazer parte da companhia profissional. Como eu estava em transição de adolescente, a minha voz falhava muito, então eu não conseguia personagens com texto. A voz oscilava demais, então eu comecei naturalmente a me tornar o “physical clown” da companhia. Por causa disso eu descobri que eu era engraçado, que o meu corpo falava, tinha muita expressão e por isso comecei a fazer dança. Mas a minha paixão inicial foi atuar. A dança veio depois, foi complementar. Depois disso eu comecei a fazer dança no Royal Academy, que é uma franchising da técnica do Royal Ballet inglês, uma escola muito boa que tinha em Goiânia, e entrei para uma companhia de dança chamada Quasar, que estava iniciando. Lá eu fiquei 8 anos. Depois eu me mudei para a Índia, onde fiquei 2 anos. Lá eu conheci japoneses que faziam butô. Fui para o Japão estudar butô com o Kazuo Ono. Depois voltei para o Brasil. Montei um solo de Butô em Goiânia, imagina…. E ainda naquela época…. (risos). Eu sempre tive esta vontade de conhecer coisas completamente diferentes.
Como a tua família reagiu quando você começou a dançar?
Minha mãe ficou até aliviada, na verdade, porque eu era um menino muito doente, eu quase fiquei cego. Eu tinha um problema nos olhos, fiz dezoito operações, sofria demais. Mas fazer teatro em Goiânia naquela época ( anos 80) era foda, era muito difícil, tinha muito preconceito, era um tabu muito grande. Mas como eu não tinha vínculo com nada, não devia nada a ninguém, eu fazia exatamente o que eu queria.
E como você veio parar na Holanda?
Por duas razões: a primeira foi a saúde. Por causa da sensibilidade dos meus olhos eu ia me mudar ou pro Alaska, ou pra Noruega ou pra cá, lugares onde é mais escuro. Eu era muito sensível à luz, tinha muitas infecções nos olhos, era muita dor. Umas das razões era essa e o meu irmão já morava aqui. Então eu pensei: vou pra Holanda, vou tentar a vida lá. Mas no começo eu fazia testes e ninguém me pegava, então eu lavava banheiro, trabalhava de modelo pra pintores e escultores, comecei de baixo mesmo. Até que um dia, um coreógrafo me deu trabalho e, de lá pra frente, eu nunca deixei de trabalhar. Por causa do trabalho eu consegui meu passaporte Holandês.
Duda Paiva na Noruega em 2012
Você teve dificuldades em se adaptar? Como a Holanda formou a pessoa e o profissional que você é hoje?
A Holanda nos anos 90 era uma Meca de receptividade. Havia naquela época a crença (quase que utópica) de uma postura multicultural, multidisciplinar, que era tudo o que eu queria. Era o Paraíso e eu me encontrei artisticamente. A Holanda, naquela época, foi extremamente generosa.
Como os teus colegas da dança reagiram à tua transição para o teatro?
Meus colegas de dança nunca gostaram de mim (risos) porque eu trouxe uma paixão e uma selvageria oriunda do Brasil: a de fazer o que eu queria. . Apesar de eu ter alguma técnica, eu não gostava de fazer as coisas desenhadas no caderno. Eu acredito, até hoje, que na arte existe metamorfose, que existe movimento, que as coisas mudam e que precisa existir uma generosidade, uma troca generosa de informação. Então os coreógrafos me ofereciam uma coreografia, eu executava. Se ficava feio no meu corpo, ou se eu não gostava, eu sugeria mudanças. Eu não tinha nenhuma vergonha na cara. Eu falava: “tá aqui a sua coreografia, mas assim vai ficar melhor, isso combina mais comigo. Me dá uma cadeira?” Eu sempre gostei de objetos . Eu não gostava de fazer dancinha, fazer “partnering” com gente, eu gostava de cadeiras, tapetes…. E os coreógrafos adoravam e me deixavam fazer tudo o que eu queria, e os outros não podiam. Aí os críticos dos jornais falavam bem do meu trabalho, consequentemente isso gerava uma despeito de alguns colegas.
Como os bonecos entraram na tua vida?
Em 98 eu estava na Companhia do coreógrafo Itzik Galili, ele convidou uma companhia de bonecos de Israel chamada Gertrude Theater, e queria fazer esta fusão entre dança e bonecos. Elas tiraram um boneco de dentro de um saco de lixo e quando eu olhei pro boneco (chamada Porshia La Belle), um novo mundo se abriu dentro de mim. Eu olhei pra Porshia e decidi: “eu vou fazer isso de hoje em diante. É isso o que eu quero!”. Foi amor à primeira vista.
Duda e Porshia , foto de Petr Kurecka
E você chegou a experimentar outros formatos ou materiais?
Nunca! Nada, foi aquilo e pronto. Eu só trabalho com a espuma e não tenho interesse em pesquisar outro material porque não existe outro material mais generoso que a espuma elástica. Ela é leve, ela proporciona horas de trabalho, tem um poder de metamorfose da máscara muito grande porque qualquer compressão dos dedos muda a expressão dos bonecos. E ao mesmo tempo, o corpo do boneco é uma extensão do corpo do bailarino. Nessa semiótica teatral a espuma traz um mundo todo novo e que é muito pouco explorado. E eu adoro estar neste tipo de situação onde tudo é novo. Tem outra coisa: a dança moderna estava me enchendo o saco, porque estava ficando muito elitizada, muito conceitual. Fazia sentido só pra quem estava fazendo, só para mundo da dança. O público não entendia nada. Por isso o público começou a não comparecer mais aos teatros. E o boneco me trouxe uma humildade, porque o boneco não te deixa mentir. Ele te força a estar no presente, no aqui e agora. Além do mais, eu entendi que eu era um amante de historias as quais os bonecos me ajudavam a narrar, sendo com palavras ou pela fisicalidade.
Agora que você dá workshops pelo mundo inteiro ensinando a técnica de interação com os bonecos aliada à dança, como anda a evolução da tua técnica por parte de outros artistas?
Ainda é uma técnica a ser formatada. Existem pessoas fazendo doutorados que trabalham comigo e estão tentando formatar, formalizar isso. Mas ainda falta muito, é uma jornada. Como a gente diz em Minas e Goiás: Ainda falta um queijo e uma rapadura.
Você alguma vez teve receio em compartilhar a tua técnica com outros artistas? Você já teve ciúme de ver um boneco teu com outros artistas?
Não, porque o que é nosso tá guardado. Eu adoro dividir. Muitas companhias me chamam pra assessorá-las, pra ajudar artisticamente, eu dou todas as minhas dicas, tudo.
Você sonha com os bonecos?
Nunca. Eu não sonho. Eu faço. Eu sonho, mas acordado.
Numa entrevista recente a um jornal de Goiânia você afirmou que a Holanda mudou muito nos últimos anos e citou a ascensão da extrema direita na Europa e os cortes no financiamento estatal da cultura na Holanda. Como estas coisas te afetam?
Afetam praticamente, porque os subsídios são menores. E pra mim a forma menos democrática de se governar é assim, acabando com a pesquisa teatral e restringindo o acesso ao teatro, que é uma manifestação do inconsciente popular. E o que a extrema direita faz é titubear as pessoas para que elas não questionem, para que elas não pensem. Eu acho isso uma coisa extremamente desleal e manipuladora. Realmente a Holanda não é mais o lugar que eu escolhi para morar. O que esta acontecendo comigo e com quase todo mundo que faz teatro, dança, música é que há menos acesso. Por exemplo, um jornal Holandês já não faz uma entrevista com você a menos que você seja uma companhia que recebe subsídio estrutural (n.d.r.: subsídio fixo por um tempo determinado, que não precisa ser pedido a cada ano). Isso é como que uma lei. Você pode ter o sucesso que tiver. E o artista estrangeiro aqui sofre ainda mais com isso. Eu até entendo como isso funciona. O pouco subsídio que ainda existe é dividido entre holandeses, entre talentos que possam representar a Holanda. Este é o “quest” deles, porque eles não têm tradição. A tradição que existia era a do multiculturalismo. Agora eles estão tentando reivindicar uma identidade que na verdade não existe. Isto é um paradoxo.
Você já se apresentou no Brasil, mas em situações isoladas, você nunca fez uma turnê pelo Brasil. Você tem vontade de promover o teu trabalho por lá?
Eu fiz espetáculos em São Paulo, Rio e Curitiba somente. Agora eu estou indo pra Goiânia de novo, levar meu primeiro solo ANGEL, através do SESC. E eu estou estudando a possibilidade de, através do SESC, desenvolver este sonho de fazer workshops mais logos. Acho que só através do SESC isso vai ser possível no Brasil. O SESC é aberto a este tipo de proposta. Eu estou desenvolvendo com eles esta proposta e o meu objetivo é fazer isso no Brasil, porque aqui na Holanda, eu não sonho mais.
Quais são teus planos pros próximos meses ou anos?
Eu estou montando um espetáculo que se chama Blind e é parcialmente a minha história de quando eu não enxergava. Eu passei quase dois anos sem enxergar, no escuro, por causa das operações. E esta sensação de não enxergar, de ter que reorganizar tudo, é a mesma sensação que eu tenho hoje em dia aqui na Holanda. Tudo sumiu e eu estou tendo que me reorganizar. É a mesma sensação de quando eu tinha os olhos vendados, de estar no escuro e ter que sobreviver, ter que me readaptar, encontrar na escuridão uma forma de sobreviver.
Continuando com a tua metáfora, esta sensação está aguçando outros sentidos em você?
Sim, eu estou tateando, tentando tatear estes elementos que vêm de dentro do escuro. Vozes, este mundo interno com a qual a gente só entra em contato quando está realmente de olhos fechados. É um mundo de sensações, de premonições, de intuição, é um resgate. Este espetáculo vai representar este resgate. É uma coprodução entre a Austrália, onde eu já passei um mês , a Noruega pra onde eu estou indo agora, também pra passar um mês, e a França, onde eu vou ser o convidado de honra do Festival Mondial du Theatre des Marionnettes de Charleville-Mézières. O espetáculo Blind estreia lá. Toda a mídia do mundo inteiro vai estar lá. Vai ser uma super exposição e eu vou expor esta vulnerabilidade que eu estou passando hoje em dia na Holanda.
Você pensa em, algum dia, voltar a morar no Brasil?
Penso!
Quando?
São planos pro futuro, assim daqui a um ano e meio…
E porque?
Por causa disso tudo. Na verdade não é mudar de vez para o Brasil, (alguns amigos dizem ser suicídio) é estabelecer uma ponte de intercâmbio entre a Holanda e o Brasil, ou entre os contatos que eu já tenho no mundo inteiro e o Brasil. Agora por exemplo, eu fiz a curadoria do festival de Charleville e eu podia convidar quem eu quisesse e eu convidei só companhias brasileiras. São companhias brasileiras que têm a curiosidade de fundir a dança com o teatro de objetos. Não é que eu queira me mudar para o Brasil por estar insatisfeito aqui. Existe sim uma insatisfação normal, mas existe também o fato concreto de tudo o que eu já realizei aqui e querer levar para lá, porque as pessoas lá têm uma curiosidade, uma vontade de ter acesso. E o Brasil é muito rico porque é uma forma diferente de pensar. E através da arte a gente abre os olhos. Os nossos olhos, como artistas e os olhos de quem está nos observando.
*FIM*
Pra conhecer melhor o trabalho de Duda Paiva, visite o site da sua companhia e assita vários vídeos disponíveis no YouTube. Ou siga a pagina da Duda Paiva Company no Facebook.
© 2015 Braziel , All pictures by Petr Kurecka
Brazilians Made in Holland #2: Duda Paiva